Pejotização: Uma ferida aberta no tecido social e trabalhista brasileiro

A Casa Texto traz uma análise sobre o “furacão” denominado “pejotização”, que vem impondo uma nova realidade na relação capital e trabalho, deixando um rastro de quebras de direitos e, por consequência, precarização no mercado de trabalho em todo o País.
A “pejotização”, termo que se popularizou no Brasil para descrever a prática de contratar profissionais liberais ou técnicos como Pessoas Jurídicas (PJ) em vez de empregados regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), emerge como um dos desafios mais urgentes e complexos do cenário trabalhista brasileiro.
O que, à primeira vista, pode parecer uma simples modalidade de contratação ou uma busca por maior flexibilidade tanto para a empresa quanto para o profissional, revela-se, em grande parte dos casos, uma estratégia deliberada para mascarar uma relação de emprego legítima e, consequentemente, evadir o cumprimento de direitos e obrigações trabalhistas e previdenciárias.
Em essência, a “pejotização” fraudulenta ocorre quando uma empresa exige ou incentiva que um indivíduo que, na prática, exerce suas atividades com pessoalidade, não eventualidade, subordinação e onerosidade – os quatro pilares que caracterizam o vínculo de emprego segundo a CLT – constitua uma empresa (geralmente um Microempreendedor Individual – MEI ou uma pequena LTDA) para “prestar serviços”. Sob o manto de um contrato de prestação de serviços entre duas empresas, esconde-se, na realidade, um trabalhador que cumpre horário, recebe ordens, tem sua atividade fiscalizada e depende economicamente daquele único “cliente”, comportando-se em tudo como um empregado, mas sem acesso aos direitos inerentes a essa condição.
As motivações das empresas para adotar a “pejotização” são quase sempre financeiras. Ao “pejotizar”, o empregador se exime do pagamento de verbas como Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), 13º salário, férias remuneradas (acrescidas de 1/3), aviso prévio em caso de desligamento sem justa causa, horas extras, adicional noturno, periculosidade, insalubridade, licença-maternidade/paternidade com estabilidade, contribuições para a Previdência Social (INSS patronal), seguro-desemprego, entre outros. Além disso, a empresa se livra de custos e obrigações relacionadas à segurança e medicina do trabalho, bem como das regras de proteção contra demissão arbitrária ou sem justa causa. O custo da mão de obra para a empresa é significativamente reduzido, e a “flexibilidade” aumenta, permitindo desligamentos mais rápidos e menos onerosos.
Para o trabalhador, contudo, as consequências são devastadoras e se traduzem diretamente na precarização do trabalho. O profissional “pejotizado” perde a segurança jurídica e econômica inerente ao contrato de emprego. Ele se torna mais vulnerável, sem rede de proteção social em caso de doença, acidente de trabalho, desemprego ou aposentadoria. A ausência de férias remuneradas leva muitos a não tirarem descanso, comprometendo sua saúde física e mental. A falta do 13º salário impacta diretamente o planejamento financeiro familiar. A ausência do FGTS e do seguro-desemprego o deixa à deriva em caso de rescisão contratual. A relação se torna profundamente desigual, com o “prestador de serviços” muitas vezes submetido às mesmas regras e controles de um empregado, mas sem os direitos correspondentes. Essa situação é particularmente grave em setores como tecnologia, comunicação, consultoria, saúde, beleza e até mesmo no serviço público, onde a “pejotização” tem sido amplamente utilizada.

Excesso de Demandas
Essa prática fraudulenta deságua, inevitavelmente, nos tribunais. A Justiça do Trabalho brasileira enfrenta, há anos, uma avalanche de processos movidos por trabalhadores “pejotizados” que buscam o reconhecimento do vínculo empregatício. Ao ingressar com uma ação, o trabalhador assume o ônus de provar que, apesar do contrato formal de prestação de serviços, a relação de fato preenchia os requisitos da CLT. Isso exige a coleta de provas robustas – testemunhos de colegas, e-mails, documentos que demonstrem subordinação, cumprimento de horário, recebimento de ordens etc. O processo judicial é, muitas vezes, longo, desgastante e caro, gerando um enorme gargalo nos tribunais e contribuindo para o acúmulo de processos. O grande número de ações e a complexidade da prova são reflexos diretos da disseminação da “pejotização” enganosa no País.
A questão da “pejotização” chegou ao STF por meio de diferentes vias processuais, sendo uma das mais notórias a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). A tese central levantada nessas ações, geralmente por entidades representantes de empresas ou setores econômicos, é que a Justiça do Trabalho (JT) estaria, em muitos casos, extrapolando sua competência ou interpretando de forma equivocada a lei ao reconhecer vínculos empregatícios em situações onde há um contrato formal de prestação de serviços firmado entre uma empresa contratante e um profissional liberal ou técnico constituído como Pessoa Jurídica (PJ).
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O argumento dos proponentes dessas ações no STF é que, ao desconsiderar o contrato de PJ e reconhecer o vínculo CLT, a Justiça do Trabalho estaria violando princípios constitucionais fundamentais, como a livre iniciativa, a liberdade de contratar e a autonomia da vontade das partes. Eles sustentam que, se um profissional optou por atuar como PJ e firmou um contrato civil ou comercial de prestação de serviços, o Poder Judiciário não poderia “desfazer” essa escolha e impor uma relação de emprego, a menos que haja um vício evidente ou coação, e mesmo assim, talvez não fosse competência da JT. Para essa linha de raciocínio, o reconhecimento automático ou simplificado do vínculo pela JT geraria insegurança jurídica e engessaria as relações de trabalho modernas.
Para a Justiça do Trabalho, o que se combate nesses casos é a fraude na utilização da figura da PJ para mascarar uma relação de emprego. A JT não desconsidera contratos válidos de PJ; ela busca identificar a realidade fática da relação de trabalho, prevalecendo a primazia da realidade sobre a forma. Reconhecer o vínculo CLT, nesse contexto, seria uma forma de garantir que o trabalhador, mesmo disfarçado de PJ, tenha acesso aos direitos mínimos assegurados pela legislação trabalhista e previdenciária.

Ações Suspensas
Nesse contexto de embate de teses e visões, o Ministro Gilmar Mendes, relator de uma ou mais dessas ações no STF, proferiu uma decisão liminar (provisória) de grande impacto. Em essência, a decisão do Ministro determinou a suspensão de todas as ações em trâmite na Justiça do Trabalho que tratam do reconhecimento de vínculo de emprego em casos de “pejotização”, desde que a contratação inicial tenha sido formalizada como prestação de serviços por meio de Pessoa Jurídica e, em alguns casos, se a decisão trabalhista de primeira ou segunda instância já tivesse desconsiderado essa contratação. Essa suspensão abrangeu processos em todo o território nacional.
As implicações dessa decisão foram imediatas e severas. Milhares de processos trabalhistas, que estavam em diversas fases (inicial, instrução, julgamento, recurso), foram paralisados. Para os trabalhadores que buscavam o reconhecimento do vínculo e o pagamento dos direitos decorrentes, a decisão representou um enorme obstáculo, pois viram seus casos suspensos por tempo indeterminado, aguardando o julgamento final do mérito pelo STF.
Essa paralisação gerou (e ainda gera) grande insegurança jurídica para os trabalhadores e para o próprio sistema de justiça. Entidades representantes de trabalhadores, advogados trabalhistas e até mesmo o Ministério Público do Trabalho (MPT) manifestaram forte desaprovação à decisão, argumentando que ela engessa a atuação da Justiça do Trabalho no combate à fraude e deixa milhares de trabalhadores desprotegidos, com seus direitos em “stand-by” na esperança de um julgamento futuro do STF. Eles veem a decisão como um enfraquecimento da capacidade da JT de garantir a primazia da realidade e de proteger a parte mais frágil da relação.
É crucial frisar que a decisão do Ministro Gilmar Mendes é uma liminar. Ela não representa o julgamento final da questão pelo Plenário do STF (o colegiado de todos os ministros). A pauta com as ações que discutem a constitucionalidade ou não do reconhecimento de vínculo pela Justiça do Trabalho em casos de “pejotização”, e, portanto, o destino das milhares de ações suspensas, aguarda ser levada para votação por todos os ministros do Supremo. A decisão final do Plenário definirá a tese jurídica que deverá ser seguida por toda a Justiça do Trabalho e terá um impacto profundo no futuro das relações de trabalho no Brasil. Até lá, a liminar de suspensão proferida pelo Ministro Gilmar Mendes permanece vigente, mantendo milhares de processos trabalhistas em compasso de espera.

Protestos
Diante desse quadro alarmante, a sociedade civil organizada tem reagido com veemência. Entidades sindicais, que representam os trabalhadores, são uma das principais fontes de denúncias da “pejotização” como uma forma de ataque direto aos direitos conquistados ao longo de décadas e à própria essência do direito do trabalho, que visa proteger a parte mais frágil da relação. Elas organizam protestos, promovem campanhas de conscientização e atuam na linha de frente da defesa dos trabalhadores “pejotizados”, buscando na justiça o reconhecimento do vínculo.
Diante desse cenário, a Seccional da OAB-ES se uniu a outras 17 instituições em um Ato Público realizado no dia 07 de maio último, em frente à sede da Justiça do Trabalho, em Vitória, ajudando a alavancar o movimento, que acontece em caráter nacional, buscando mobilizar a sociedade em defesa da competência constitucional da Justiça do Trabalho.
Rosemary Machado de Paula, presidente da Associação Espírito-Santense da Advocacia Trabalhista (Aesat) e parte da organização do movimento no Estado, pontuou que é fundamental “esclarecer a sociedade sobre a realidade por trás da ‘pejotização’”. Segundo ela, essa prática atinge trabalhadores braçais e auxiliares de serviços gerais, que são forçados a se tornar PJ (CNPJ ou MEI) para receber por nota fiscal, simulando uma prestação de serviço. “Eles perdem a segurança do vínculo CLT, o FGTS, o 13º salário e, o que é mais preocupante, a chance de ter uma aposentadoria de fato. É uma fraude que também lesa o erário”, afirmou. Rosemary explicou que “com essas empresas que apenas existem para disfarçar a relação de emprego, a contribuição para a Previdência despenca, e o rombo fiscal se torna gigantesco”.
A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) também tem se posicionado firmemente contra a “pejotização” fraudulenta. As seccionais da OAB em todo o Brasil promovem debates, emitem notas públicas e atuam junto aos poderes Legislativo e Judiciário para combater essa prática. A OAB entende que a “pejotização” viola princípios constitucionais, precariza a advocacia trabalhista (ao dificultar o acesso à justiça e a prova dos fatos) e compromete a segurança jurídica. A Ordem defende a fiscalização rigorosa por parte do Ministério Público do Trabalho (MPT) e do Ministério do Trabalho e Emprego, bem como a necessidade de legislação mais clara e eficaz para coibir a fraude e punir as empresas que a praticam. Protestos e manifestações de sindicatos OAB tornaram-se comuns em diversas cidades do País, chamando a atenção para a gravidade do problema.
“Para que uma Justiça especializada, como a do Trabalho, realize plenamente sua função, é fundamental que sua competência seja vasta, contemplando não somente os direitos trabalhistas em si, mas também os aspectos previdenciários e tributários que deles se ramificam”, opinou Érica Neves, presidente da Seccional OAB-ES. Ela alertou que “propostas para diminuir essa abrangência, como se observa na discussão sobre a ‘pejotização’ no STF, equivalem a comprometer a rede de proteção ao trabalhador e a fragilizar a base de todo o sistema que rege as relações de trabalho no País”.
Além do impacto direto no trabalhador e na justiça, a “pejotização” prejudica o Estado (com a sonegação de impostos e contribuições previdenciárias, afetando o financiamento da seguridade social) e gera concorrência desleal entre empresas (aquelas que cumprem a lei têm custos maiores do que as que fraudam).
Em resumo, a “pejotização”, quando utilizada de forma fraudulenta para disfarçar uma relação de emprego, não é apenas uma manobra fiscal ou contratual. É um ataque direto aos alicerces do direito do trabalho brasileiro, construído para equilibrar a relação capital-trabalho. Ela gera precarização, insegurança jurídica e social para milhões de trabalhadores, sobrecarrega o sistema judiciário e fragiliza o Estado. O combate a essa prática exige a união de esforços da sociedade civil organizada, das instituições de justiça (como o MPT e a Justiça do Trabalho), do Poder Legislativo (na criação de normas mais protetivas) e da fiscalização, garantindo que a lei seja cumprida e que a dignidade do trabalhador seja respeitada. A luta contra a “pejotização” é, portanto, uma luta pela justiça social e pela efetividade dos direitos fundamentais no Brasil.
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