Quando a História faz justiça (Parte 2)

The Conversation
Reedição Guilherme Augusto Zacharias
Ilustrações e fotos reprodução internet
O caracol fantasma da Escócia
Caso Donoghue x Stevenson revoluciona a lei da negligência em 1932
Uma história peculiar, com contornos quase surreais, emergiu dos tribunais escoceses em 1932 e para sempre alterou a paisagem do direito da responsabilidade civil. A protagonista? Uma modesta garrafa de ginger beer e a alegada presença nauseante de um caracol em avançado estado de decomposição.
A Sra. Donoghue, a consumidora em questão, não adquiriu diretamente a fatídica bebida. Um amigo foi o responsável pela compra. Após ingerir parte do líquido, a desagradável descoberta a teria levado a um choque nervoso e severa gastroenterite. Diante do infortúnio, uma barreira legal se erguia: sem um contrato direto de compra e venda com o fabricante, o Sr. Stevenson, as vias tradicionais para uma ação judicial pareciam bloqueadas.
Um tribunal ousado abre novos caminhos para a justiça
No entanto, a narrativa tomou um rumo inesperado. Longe de se ater à rigidez contratual, o tribunal escocês demonstrou uma visão progressista e inovadora. Em uma decisão que ecoaria por todo o sistema jurídico, estendeu os limites da lei da negligência. O veredicto estabeleceu um princípio fundamental: indivíduos e empresas têm o dever de exercer um cuidado razoável em relação àqueles que, previsivelmente, podem ser afetados por seus atos ou produtos.
Essa expansão da doutrina da negligência ignorou a ausência de um contrato direto entre a Sra. Donoghue e o Sr. Stevenson, abrindo um precedente crucial para a proteção dos consumidores e terceiros potencialmente prejudicados.

O mistério insepulto do caracol e o legado duradouro
A verdade factual sobre a existência do caracol permanece envolta em névoa. O Sr. Stevenson faleceu antes que qualquer evidência pudesse ser formalmente apresentada em juízo, deixando uma interrogação persistente na história jurídica.
Apesar da incerteza sobre o protagonista rastejante, o caso **Donoghue x Stevenson** transcendeu a mera anedota. Ele se consolidou como um marco essencial no direito da responsabilidade civil, estabelecendo a base para a moderna compreensão do dever de cuidado e pavimentando o caminho para inúmeras ações judiciais em defesa de vítimas de negligência, mesmo sem uma
relação contratual direta com o causador do dano. O “caracol fantasma” da Escócia, afinal, legou uma revolução silenciosa na busca por justiça.
Fagan e o comissário de Polícia Metropolitana
Roda em pé de policial resulta em condenação de motorista
Para ser considerado culpado de um crime, muitas vezes é necessário um ato ilícito acompanhado de um estado mental culposo, como uma intenção criminosa. Então, tendo acidentalmente atropelado um policial com seu carro, o Sr. Fagan cometeu uma agressão ao decidir não removê-lo?
O Sr. Fagan sugeriu que não porque ele não tinha intenção criminosa no momento em que o carro foi parar no local, mas o tribunal decidiu que a decisão de deixar o carro ali foi uma combinação de ato e intenção, o que significava que ele era culpado do crime.
O caso Fagan x Metropolitan Police Commissioner (1969) tratou da questão de se uma agressão pode ser considerada um ato contínuo e se a mens rea (intenção criminosa) pode ser formada após o início do actus reus (ato criminoso). A decisão do tribunal foi que, em certas circunstâncias, sim. No caso em questão, Fagan acidentalmente dirigiu seu carro no pé de um policial e se recusou a movê-lo por um tempo. O tribunal decidiu que a agressão começou quando Fagan formou a intenção de manter a roda no pé do policial, tornando o ato inicial (estacionar no pé) um ato contínuo de agressão.
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O caso Belmarsh, 2004
O não da Câmara dos Lordes contra a detenção indefinida de suspeitos de terrorismo
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